domingo, 30 de setembro de 2012

Perfume

              

                O gondoleiro estava indisposto. Dizia que havia tomado todas na noite anterior. E era cedo. A mulher, pela primeira vez naquela cidade tão particular, vislumbrava cada pedra. No verão quente mediterrâneo, a cada ponte, uma saudosa lembrança fetal de acolhimento à sombra. Lembrei subitamente do amor passado com o cheiro de merda que singrava com o barco. A especificidade do lugar não me era incomum - estive ali antes. (minha memória olfativa é mais tenaz do que a dos outros sentidos). E não fazia sentido, aquela cidade ser a mais romântica das cidades do Ocidente. Lembrei que pensava "a cidade inteira deve despejar seus dejetos n'água". E pensei novamente que talvez fizesse sentido todo aquele romantismo. Afinal, amar é sobretudo a intimidade dividida. Os humores, os fluídos corporais.. pensei no aumento do nível do mar.. e a beijei cinematograficamente.



sábado, 22 de setembro de 2012

Neblina

Nesta manhã, a turbidez das nuvens
Faz com que o sol opressivo se finja de uma apraz lua luminosa.
A nébula flor
Floresce diante de nossas mandíbulas
E o ranger de nossos dentes raspa a civilização.
Incapaz de tingir ou fabricar o quadro sem arestas da paisagem,
Voltamos-nos todos ao instinto selvagem da beleza.



segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Haicai essencial


O grão é planta
Em toda sua essência
A planta muda.



domingo, 9 de setembro de 2012

O olho nu


A diversidade de nuvens me faz lembrar da totalidade de pensamentos que incorrem pela sua cabeça.
E pela sua doença me atravessam os pesadelos e tormentas de um mar indomável e sintomaticamente obstinado em sua luta particular contra as rochas.
As arestas dos edifícios me remetem a tenacidade de tuas unhas pintadas, e os afagos dissolutos do vento.
As tuas futuras rugas, eu as vejo dos anos-luz do horizonte, a desfragmentação do universo.
Já não sei onde te começo e termino.
Tornei-me o intervalo entre você e não-sei-o-quê..


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Bilhete




Ouvi dizer que passastes dizendo que passaras ouvindo o que eu dizia.
E dizendo, sem saber que ouviras, dizia eu um dito que lhe despia.
Eu, sem nem saber que existias, hesitei então quando soube - descobri-te o ouvido,
razão-de-ser da minha boca, e de meus ditos, que guardei então,
até que não passasses mais, ou pelo menos, que não dissesses mais que me ouvia.
E quando o canto virou pranto, se foi tudo o que havia, a boca já não dizia
e o ouvido já não ouvia. Até que sobrou o tato, e a mão ávida que escrevia
bilhetes engavetados a mulher dos ouvidos que não ouvia. E foram dois, sete, mil,
até que os bilhetes foram lidos todos do fundo do livro que ninguém lia. Os olhos dela
verteram pelas letras nostalgia. A água do tempo, o transe da vida
tocou dizer que passavas lendo, o que a minha mão trêmula não mais sentia.



sábado, 1 de setembro de 2012

Verborragia

Tua vulva é o vulgo que
Me envolve

Na encruzilhada do quarto
Vejo teus vultos de vidro

Virados do avesso:

Os travesseiros que guardam
teus ácaros;

Os vácuos por entre teus vincos;

E os versos ao vê-la de quatro.