quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Ponteiro

Estou atrasado.
O ônibus saiu sem me esperar.
Nessa oportunidade impossível de refletir sobre o tempo entre a saída pontual de um ônibus e a previsão da chegada do próximo, eu me ocupo de culpar-me pelo atraso ou pela automação de nossas relações civilizacionais. O mundo disforme das boas intenções é o inferno dos outros. O próximo chegou precisamente, sem esparar pelos atrasos alheios.
Há algo que comove na imobilidade de assistir a paisagem em movimento, em se dar conta do atraso, da recorrência dos dias e das pessoas idosas que não tem lugar pra sentar. Talvez nada seja mais cruel que a educação diante do ponteiro afiado das horas.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

relíquias

norma
data venia
seja tenia
senil mata

tome a turba de rinocerontes
como exemplo
eles voam sem porquê

como o outro escreve
através de mim
sobre o malabarista do espaço

a brevidade é feita um grito
um filme mudo de pessoas mortas
o arrasto rebubinador

mas os personagens estão intactos
as mentiras não morrem
as mentiras são as mais concretas pedras
flutuantes

{não se sabe do homero
só se sabe de ulisses
aquele ninguém
aquele mendigo que retorna}

e retornamos
como os mares que despencam quando a terra finda

quando pela fenda de teu corpo
eu fecundo

ou por acaso aquela pedra
que instrumenta o impronunciável

no parque idílico, o qual nos domesticamos
as bestas desenham naturezas-mortas
em paredes de cimento

frutas em decomposição

mas se até a pedra apodrece gravitando involuntária pelo espaço,
não dirão o mesmo do sublime.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Nadagonia

Nada é mais perverso
Do que a narrativa,
Diante da realidade
Implacável dos fatos

Esopoclastia

Sentido da vida, rapaz?
A fábula acabou. A cigarra trocou de pele, o formigueiro inundou antes do inverno, as vinhas apodreceram e a raposa invadiu o galinheiro.
A moral da história não termina quando acaba.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Prece apressada

Nasça
Até
Que
Assa

Ouça
O seu
Soluço

Resolva
Essa
Celeuma

Salve
Quem
Puder

Pelo
Imundo
Mundo

Possa
O que
Salvar

Mude
Mudo
Muda

Fele
Até
Que
Fira

Seja
Até
Que
Sele

Doe
Até
Que
Doa

Some
Até
Que
Suma

Amendoeira

(Você pega Drummond. Um velhinho tãoo inofensivo. Mas que disse tanta coisa. )

A dimensão da humanidade está nesse lugar entre a forma e o conteúdo. Entre a potência e o retrato, o impulso, que nos leva ao estranhamento dos nossos rostos no espelho.


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

shade


my bird of prey
say
whatever is
your name
tame
wherever is
your place
fade
whenever is
again

domingo, 28 de agosto de 2016

Natureza morta

Ver
Ver-me
Cada verme
Em meu nervo
Que me vê
Como uma cadáver
Sobre a derme
Que me despe
Deste espelho
Revirado
Pelos poros
Se alimenta
Do vazio
Que me forma
E me torna
E me revira
Vivo ou morto
Ao ver-me verme
E ser-me solto
Pela terra
Que fecundo
Com meu corpo

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Trás-os-montes

A cabeça lateja ao travesseiro.

Torno-me o rio que meu avô ancestral mergulhou naquela noite de calor e festa.

Só o rio em mim me lembra.

Não sei seu nome, mas sinto sua correnteza..

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Olho a mim

Olho a mim
Como outro
Com outro
Olho a mim
Como a mim
Olho outro
Meu outro
Olho como
Como outro
Que me olha
Outro outro
Olho o olho
Como a mim.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

marfim

eu não sei onde está
e na verdade nunca adiantou
pois matei a aula da sabedoria
pulei o muro e dei de cara com o chão
sou craque (crack?)
PhD em chãologia
posso olhar pro chão como um astrólogo olha pro céu
e dizer que pelo alinhamento dos teus pés com o buraco
seu destino irá ser trágico
ou que o signo que rege a tua vida é Asfalto, Pedra-portuguesa ou Tapete-Persa
os que tem ascendente em Mato são sempre mais pacientes
mas ainda não sei onde está
decerto caiu,
poderia ter voado
aliás
queria eu que tivesse voado
você gostaria bastante
seu sonho sempre foi voar, né?
não lembro se sonhei com isso ou se supus ter te sonhado um sonho
fato é que cai
no sonho e acordei pensando que tivesse dito isso pra mim
acho que foi isso
acabei caindo e você voando
ou talvez você tenha caído em outro planeta que passava
a gravidade é implacável
mas sempre me apeguei as coisas
livros, cadernos, anotações velhas e até à minhas provas antigas que provam a minha falta de propriedade
as coisas me são pessoas que são lugares
foi em budapeste que eu te vi, mesmo tão distante
me senti em você
e quando nevou, quando os flocos caiam sublimes
minha língua aberta
sentia budapeste
eu dentro de budapeste e budapeste dentro de mim
não sei se
a liberdade tem gosto de floco de neve
ou de budapeste
mas
naquela noite a cidade não ficou branca
eu não sei onde está
e é inverno

$...

Atrás de toda ciência, há uma hipótese.
O que move toda certeza é a dúvida.
Os que pelos números vivem a vida,
Viram estatística mesmo antes da morte.

memórias de carvalho

a imagem da barbárie e da candura
o machado de são francisco de assis
corta a irmã árvore
para aquecer a irmã carne
do irmão de sangue.


todo dom é imundo (porque não é daqui)
e todo murro é em ponta de faca (a que lhe corta o pão)
até que lhe fecunde a mão.. o braço
e já não lhe possa mais sustentar
a realidade que lhe enforca a face

capitulada aos olhos
dos campos de concentração
de ciganos tétricos
de cheiros fétidos
porque a oralidade é a fumaça da mais velha árvore do mundo.

e só o que podemos é fumá-la.. à espera da onda.


At3m4

A matemática só me foi clara quando assisti a bomba.

A matemática assassinou meus filhos com projéteis aerodinâmicos.

A matemática me mata atematicamente.

O 1 me empala
O 2 me dusa
O 3 me trepa
O 4 me enquadra
O 5 me cerca
O 6 me encesta
O 7 intercepta
O 8 me olha
O 9 renova
O 0 me encerra


quarta-feira, 6 de julho de 2016

grã

A retina descola
No ecrã

Eu não poderia ser outro
Que não tu

Morte e vida
Pelo ecrã

O sul da alma afã
A fama d'alva azul